quarta-feira, setembro 10, 2014

O lobisomem invisível

Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam. Pedem-me provas. Mas que provas lhe poderei dar? Envio-lhes fotografias, fazendo as minhas caretas mais ferozes e sinistras, a boca bem aberta, com os caninos salientes, deixando escorrer a baba, o pêlo encaracolado, bem comprido, arrastando-se pelo chão. Mas os meus amigos não acreditam. Não reparam nas minhas garras, no meu esgar ameaçador, nas minhas mandíbulas sanguinolentas. Vêm apenas a mobília da minha casa, a minha cama, com os lençóis desfraldados, o pijama atirado para o chão, as roupas em desalinho, livros espalhados por todo o lado, restos de comida, embalagens vazias de iogurte.
Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam. Riem-se e dizem com a voz sarcástica do costume: pois, não há dúvida de que parece mesmo que passou por aí um lobisomem. E devia ser bem grande, deixou-te a casa toda desarrumada, eheh. E estava com fome, a julgar pelas embalagens vazias de comida no chão, eheh.
Não há volta a dar: sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam.
Pego na minha câmara de filmar, pouso-a em cima da prateleira e começo a filmar. Volto a ensaiar um ar ameaçador, mas o meu  pêlo já não está encaracolado, com a irritação ficou eriçado, gotas de suor caem para o chão, é uma noite de agosto, no pico do verão, 20 e muitos graus lá fora e eu com uma camada tripla de pêlo grosso a proteger-me o corpo, o calor é insuportável, solto um uivo forte, uuuuuhhh, grraaauuu, durante um minuto ou dois. Depois, desligo a câmara de filmar. Envio o video para os meus amigos. "Então, já acreditam?".
Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos não acreditam. Eles riem-se e dizem com a voz sacástica do costume: ahah, estou a ver que andas a ensaiar para a Academia de Estrelas. Ou entraste para alguma banda de black metal?Mas onde é que estavas tu? Não ti vimos em lugar nenhum, no video. Só ouvíamos a voz, eheh.
A minha vizinha do lado não acredita. Telefona-me a implorar para eu fazer pouco barulho, parece impossível tanta gritaria a meio da noite. Eu tento explicar-lhe, sim, é mais forte do que eu, não estou a gritar, é o meu tom de voz normal para as noites de sexta feira, sim menina Marta, não estou a fazer nada de mal, porto-me como um cidadão consciencioso, o problema, menina Marta, é que me transformo num lobisom invisível, com a carne para dentro e os pêlos para fora, com garras afiadas, a palma das mãos peludas, as orelhas pontiagudas, o nariz molhado e os caninos salientes, deixando escorrer a barba.
Sou o lobisomem invisível, mas o meus amigos e a menina Marta não acreditam. A menina Marta chama a polícia, que também não acredita.
Sabem? Sou um lobisomem muito peculiar. Quando sinto o medo e a ameaça a aproximarem-se, as minhas garras retraem-se, num acto reflexo, as minhas mandíbulas deixam de ser salientes, o meu pêlo desaparece, de novo, num golpe de magia. Eu bem tento gritar, com a minha fúria contida: uuuuhhhh, grrraaauuu, mas o som da minha voz torna-se quase inaudível. No momento em que a polícia toca à porta, e diz, num tom de voz autoritário: "polícia, faça o favor de abrir a porta", já eu me transformei num cidadão amistoso, cumpridor da Lei e dos bons costumes. A minha face torna-se suficientemente visível para ser completamente identificada pelos agentes da autoridade. "Muito bem, senhor. A sua vizinha apresentou queixa de si, diz que não a deixa dormir com tanto barulho. Não tem vergonha? Um senhor da sua idade? Já é a quinta vez, este mês que isto acontece".
Eu peço muitas desculpas, prometo comportar-me melhor, de uma forma mais consentânea com um indivíduo da minha idade e da minha situação social.
Não vale a pena estar com mais explicações. Sou o lobisomem invisível, mas os meus amigos, a menina Marta e a polícia não acreditam.
Não os condeno. Que provas lhes poderei dar?
Mal a polícia se afasta do prédio, voltam a crescer-me os dentes caninos e o pêlo do corpo. Os meus olhos ficam, de novo, afogueados, o ventre aberto, quase sangrando. São duas da manhã. É a hora em fico com uma incontrolável vontade de sair à rua. Desço as escadas do prédio a correr, os trinta andares são atravessados em poucos segundos, durante as quais assumo todas as formas reconhecíveis dos lobisomens, nas várias vertentes do imaginário popular: bezerro negro com longas orelhas. Burro. Bode. Onça. Cão que solta fogo pela boca. Mula branca com cabeça de homem. Sombra escura. Mas ninguém me vê, Sou o lobisomem invisível.
Chego cansado ao vão das escadas do prédio. Agora já não me apetece sair à rua. Contentar-me-ei com a primeira mulher que me aparecer. Subo um lanço de escadas, até ao primeiro andar, reúno as minhas forças e arrombo a porta da Doutora Sofia, uma senhora divorciada, na casa dos 40, já a roçar os 50. Descubro que já está no quarto, a dormir. Não ouviu nada. Eu aproximo-me, entro sorrateiramente no seu quarto, na forma mais sorrateira possível para um lobisomem, mesmo que invisível. Reparo que a minha excitação atinge a pujança máxima neste instante em que me aproximo da minha presa, a Doutora Sofia, que me parece irresistível, mesmo que esteja a aproximar-se da casa dos 50.
No instante em que a Doutora Sofia já adivinha o meu bafo quente, e que, por isso, fica com um sorriso rasgado na cara, como que pressentindo um sonho mais quente, dá-se a minha terceira transformação.
Acontece sempre isto, nestes momentos de quase gozo dos prazeres terrenos. Contaminado pela excitação, o meu corpo dissipa-se e transformo-me num fantasma. Pelas três da manhã sou o lobisomem invisível incorpóreo. Nos seus sonhos, a Doutora Sofia parece compreender a transformação. O seu rosto retrai-se, o sorriso desaparece e fica um triste esgar de resignação.
Quanto a mim, volto a sair pela porta arrombada, subo as escadas num passo lento e entro, de novo, no meu apartamento. Por sorte, a porta ficou aberta.
Sento-me no sofá e deixo-me ficar a ver as séries policiais que passam à noite, no canal por cabo, ao fim de semana. Vejo o que está a dar. Não posso pegar no controlo remoto. Sinto-me triste, mas nem penso em falar com os meus amigos, no chat do facebook. Não conseguiria carregar nas teclas, atendendo ao meu estado peculiar.
De qualquer forma, não serviria de nada. Sou o lobisomem invisível incorpóreo, mas os meus amigos não acreditam.
Adormeço pouco depois, hipnotizado pelas séries policiais. Deixo-me embalar por sonhos reconfortantes.
Mesmo antes de adormecer, surge-me um último pensamento: coitada da Doutora Sofia. Lá terá de comprar mais uma porta. Só este mês, já é a 5ª, e ainda estamos no dia 20.

  

sexta-feira, dezembro 20, 2013

Conto de Natal

Desde pequena que Jocasta Damasceno era diariamente atormentada pelo Espírito das Leis.
O tenebroso espectro surgia-lhe a meio da noite e, sem se fazer anunciar, aproximava-se de Jocasta, enquanto esta dormia os seus inocentes sonhos de criança e puxava-lhe os lençóis, o que lhe provocava, obviamente, bastante frio.
 Todos sabem que os espectros trazem consigo os arrepios e as temperaturas baixas dos mais rigorosos invernos. Por isso, puxar os lençóis da cama de Jocasta Damasceno parecia ser um capricho um pouco desnecessário (esta teria, provavelmente, acordado à mesma, com o bafo gélido do Espírito das Leis ou, se não acordasse com o seu bafo gélido, acordaria provavelmente com a incandescente luz do Espírito ou com o som da sua voz, parecida com dezenas de trovões desafinados.
"Jocasta...Jocasta Damasceno...escuta o que te digo....daqui fala o Espíriiiito das Leeeeeis...."

Começava sempre assim. Depois, o Espírito das Leis iniciava os seus ensinamentos diários, como este, por exemplo:
"Jocasta...escuta o que te digo. Tens sempre de obedecer e de viver de acordo com o Espírito das Leis.
 Sabes o que é o Espírito das Leis, Jocasta? Repara que não estou a falar apenas das Leis numa acepção técnica e específica, como, por exemplo, a Lei complementar e a Lei ordinária.
Não, Jocasta...eu estou a falar das Leis num sentido bastante vasto, ou seja, toda a regra jurídica, escrita ou não. Ou seja, abrange também os costumes. Sabes o que são os costumes, Jocasta? São uma prática social reiterada, acompanhada da convicção da obrigatoriedade.
Deves saber isto na ponta da língua, para não caíres em tentações.
Deves obedecer aos costumes. Mas não a todos os costumes, toma atenção, Jocasta!"
A Jocasta adormecia quase sempre durante as lições e o Espírito das Leis tinha de mandar uma baforada fria para cima da sua cara, o que resultava sempre.
Jocasta Damasceno! Toma atenção, que é importante!Só podes obedecer aos costumes praeter legem e secundum legem, nunca deverás obedecer aos costumes contra legem. Vou agora falar-te dos exercícios da autoridade política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política".

Depois do discurso do Espírito das Leis, que durava sempre até de madrugada, Jocasta ainda adormecia, mas já não tinha os sonhos inocentes próprios das criancinhas da sua idade. Sonhava com as diferenças fundamentais entre os costumes praeter legens e contra legens e com os exercícios da autoridade política.

E assim se passaram os anos. Jocasta aprendeu que todo o Direito é emanação da ordem social. Aprendeu o que é a ordem social e aprendeu que lhe devemos todo o respeito, pois devemos respeitar toda a ordem e tudo o que é social, até porque, como o Espírito das Leis bem explicava, social deriva da palavra Latina socii, que significada aliados, e todos sabemos que devemos lealdade para com os nossos aliados.

Jocasta Damasceno continuou a ser atormentada pelo tenebroso espectro a um ritmo diário, durante largos anos. Todas as noites, o Espírito das Leis aproximava-se de Jocasta e puxava-lhe os lençóis, o que lhe continuava a provocar, obviamente, bastante frio.

Até que Jocasta chegou à adolescência. Tornou-se uma bela moça, muito prendada, séria, asseada, respeitadora da boa ordem, dos bons usos, dos bons costumes e amiga dos aliados da ordem social obediente, tal como mandavam os ensinamentos do Espírito das Leis.

Jocasta voltava a pé para casa, todos os dias, vinda das aulas de Metafísica Deontológica Naturalística e os trolhas, os pedreiros, os mestres-de-obra e os capatazes começaram a reparar nela. Ao princípio, talvez por respeito, não diziam nada. Mas, com o passar dos tempos, já cochichavam entre si.

Até que um dia, um dos trolhas, o mais atrevido deles todos, e provavelmente, já com um grãozito na asa, gritou, com uma voz parecida com dezenas de trovões desafinados, mas aquecida pelo bafo de álcool ordinário:

"És memo boa! Queres-te casar comigo, ó princesa? Por ti fazia todo o tipo de cenas, eu até cometia crimes em sentido formal e em sentido material, tás a ver? Tens um corpinho de delito, que nem te conto! Como é que te chamas, ó jóia?".

Jocasta correu para casa, realmente apavorada, a pensar nas tenebrosas palavras do trolha.
Será que ele estaria mesmo disposto a cometer uma violação da lei penal incriminadora? A proceder a uma acção ou omissão que constitui ofensa a um bem jurídico individual ou colectivo?

E, pior que tudo, ficou a saber que tinha um corpo de delito. Sabia bem que o corpo de delito é o conjunto dos vestígios materiais resultantes da prática criminosa. Desde a mais tenra das idades que se habituara a obedecer cegamente ao Espírito das Leis. Como é que poderia continuar a fazê-lo se a sua alma habitava num reles vestígio material resultante da prática criminosa?

 Jocasta chegou a casa exausta, depois da longa corrida, e trancou-se na casa de banho. Olhou demoradamente para as mãos. Cerrou os punhos, com força. Olhou para o espelho e pôs-a a observá-lo, demoradamente, pela primeira vez na vida, com a devida atenção.
Com horror, percebeu que sentia um terrível fascínio pela imagem devolvida pelo espelho. Encarava, pela primeira vez, de frente, o terrível inimigo que o Espírito das Leis a havia ensinado a combater, desde pequena: um corpo de delito permanente, cujos vestígios possuíam uma durabilidade extensa e perene. Depois, foi-se deitar, sem comer o jantar.

À noite, o Espírito das Leis atormentou-a com redobrada intensidade. O sermão era sobre a rejeição da ilusão positivista de que a lei é auto suficiente e que a norma não poderá nunca ser vista com abstracção da ordem social. Mas Jocasta nem  o ouviu. Pôs-se a pensar no seu corpo de delito, cheia de curiosidade. Queria observá-lo atentamente. Mas, assustada, escondeu-se na penumbra do quarto. Não podia deixar que o Espírito das Leis reparasse em si.

No dia seguinte, bem cedo, foi à loja da esquina e comprou um pack de espanta espíritos, made in China e colocou-os à entrada do seu quarto.

Foi para as aulas de Metafísica Deontológica Naturalística e entrou na sala antes de todos os outros. Não tomou apontamentos e já bocejava quando, a meio da aula, o professor resolveu sentar-se. Acto contínuo, o professor mandou um berro realmente arrepiante. Gritou, enquanto segurava um pionaise, que alguém colocara estrategicamente bem no meio da sua cadeira:
"Quem foi o malandreco que fez isto?"

Ninguém se acusou. Jocasta Damasceno estava na fila de trás, bem embrulhada num longo casaco, que lhe escondia por completo o conjunto dos vestígios materiais resultantes da prática criminosa. Esboçou um sorriso tímido. Nunca as aulas lhe tinham parecido tão divertidas.

De regresso a casa, cantarolava, passou pelos homens das obras e disse-lhes, alegremente:
"Bom dia, trolhas, bom dia pedreiros, bom dia mestres de obras, bom dia capatazes"!

Estes gritaram, em uníssono:

"Oh jóia, tens um corpo de delito que nem te digo".

Jocasta sorriu, radiante.

Quando chegou a casa, trancou-se na casa de banho e admirou-se ao espelho. Tomou um banho demorado e, ao jantar, comeu por três. Havia que alimentar o corpo de delito.

Adormeceu logo, apenas para ser acordada por um grito aflitivo.

"Socorro, socorro, acudaaam-me".

Jocasta quase nem reconheceu a voz do Espírito das Leis.
Assustado pelos espanta-espíritos, gritava com um tom de voz efeminado, nada assustador:

"Jocasta...Jocasta Damasceno...escuta o que te digo....daqui fala o Espíriiiito das Leeeeeis...Jocasta...escuta...porque é que colocaste estes horríveis espanta-espíritos aqui no quarto? Dão-me uns arrepios horríveis..."

"É para não me arrancares os lençóis da cama. Faz-me frio. E devias ter vergonha de destapares uma donzela dessa forma despudorada." - respondeu Jocasta, num tom de voz parecido com dezenas de trovões desafinados. E acrescentou: "se prometeres que não me voltas a destapar, seja em que circunstâncias forem, eu retiro daqui os espanta-espíritos".

O Espírito das Leis concordou, de bom grado. A partir dessa noite, o corpo de delito podia crescer a seu bel-prazer.

Passaram-se os meses. O corpo de delito floresceu, resplandecente, num conjunto de factos criminosos de durabilidade extensa, conscientemente opostos à Lei vigente.

Para contrariar a possível realização de perícias criminais, Jocasta achou por bem esconder os vestígios dos delitos diariamente perpetrados por si, pelo que  resolveu, então, espalhar as sementes do seu corpo de delito. Ao princípio, cortava alguns fios de cabelo, as unhas dos pés e das mãos, tirava um macaco do nariz ou juntava os seus fluídos corporais dentro de um frasco. De seguida, embrulhava as sementes do corpo de delito em bonitos papeis coloridos e festivos e enviava-os, incógnitos, pelo correio, para qualquer parte do mundo.

Uns tempos depois já enviava pelo correio outras partes do corpo, primeiro os dedos mindinhos dos pés, depois passou para os outros dedos dos pés, os dedos das mãos, os braços, as pernas... Durante a noite, protegidas pelos lençóis e embaladas e fortalecidas pelas vetustas litanias do Espírito das Leis ancestrais, as partes do corpo arrancadas durante o dia voltavam a crescer, ainda mais fortes e amadurecidas, prontas para cometerem novas práticas opostas à Lei vigente.

Jocasta continuava a voltar a pé para casa, todos os dias. Os polícias sinaleiros, os legisladores, curandeiros e juízes conselheiros reparavam nela e cochivavam, entre si.
Diziam-lhe:
-

Querido leitor. Vou interromper a minha narrativa. Não estarás a ouvir, neste momento, alguém a tocar à porta? Ou não ouves o som de um objecto a cair pela chaminé? Levanta-te e vai ver o que é.
Será um embrulho colorido?
Aproveita para veres o que está dentro do teu sapatinho. E não te espantes se vires lá dentro um belo e delicado pezinho, palpitante de vida.









sábado, dezembro 07, 2013

A Bela história de Sernão D'Amortanha




Sernão D'Amortenha marcou presença em todos os grandes eventos bélicos, esteve na invasão da Catalísia e enterrou o estandarte da República dos Jacumecos por terras da Lampareira.
O tio avô militar ensinou-lhe bem cedo os velhos códigos deontorrágicos e a continenciar a remota linha Herbadanainha.
Sernão D'Amortanha sentiu-se arrebatado quando abafou o primeiro nigurunfo, ao espetar a afinadíssima vara do seu tangalote bem no meio do lamboril do incauto sacrispanto, tendo logo  mandado radiante mensagem avisando a sua família distante, numa missiva encriptada colocada nas patas de um pombondengue carroceiro.
O tio avô, satisfeito com o jeito delfínico para varar nigurunfos, matou de uma assentadela dois borregelos e três vacainhos, para comemorar o efemérito. 

Quando Sernão D'Amortanha despachou o terceiro nigurunfo, o seu sangue já não jorrava mais intensamente e uma intensa modorra começava a invadir o espírito endorminhado. Do espólio nigurunfico saqueado apenas lhe interessavam os livros bafurustos e as últimas palavras arrancadas às almas vaporosas das suas vítimas antes do suspiro final., palavras que guardava zelosamente, num recipiente hermeticamente fechado, à prova de fugas de informação, palavras, pensamentos, acções e omissões.

Sernão D'Amortanha arrancou milhões de últimas palavras e engolpinhou de, um longo trago, toda a tradição oralítíca dos nigurunfos.   

Quando já não restava um último nigurunfo para vaporar aos ouvidos de Sernão D'Amortanha, seguiram-se os, sandomílios, os analfabarantos, buzidunguios, carmafélicos, dignorantios, efeméricos, falantrópicos, gugalôcios e muitas outras sub espécies, todas varradas bem no meio do lamboril pelo empedernástico tangalote do digníssimo Sernão D'Amortenha. As suas almas eram pacientemente pentefinadas e guardadas no recipiente.

Coberto de honralhas, com toda a República dos Jacumecos a seus pés, e sem mais sub espécies para tangalotar, Sernão d'Amortanha casou-se com a Bela, filha do Marchimprador e foi viver para o campo, na qualidade de uma respeitável árvore, o que apanhou toda a gente surprevenida, todos esperavam que seguisse a carreira de Imperador, Presidente Alado, Embaixador do Universo junto das galáxias adjuvantes ou que professasse os méritos em escolas militares dos terrenos em redor, mas eis Sernão transformado num frondoso plunvedico zigursférico.

Não foi uma escolha acasada, os plunvedicos zigursféricos são árvores vestustais da pátria d'Amortenha, cantautadas por bardos, poetistas de longas gerações. Reza a lenda que os plunvedicos chegam a atingir os cinco mil anos, o que talvez tenha pesado na escolha de Sernão. Um pequeno passo para a eteriadade, transformar-se em plunvedico zigursférico.

Os plunvedicos dão boas folhas racúrticas, cheias de seivas aloevéricas, boas para curar ecuremas da pele, têm um tronco cheio de madeira forte para produzir em massa mesas cadeiras pranchas rolhas.
(isto desconhecia eu, li-o num panfleto).

 Sernão d'Amortenha enraizou-se no floresmato mais remóspito e tratou de professar os ensinamentos extraídos aos povos varridos pelo tangalote.

A mulher, frustraída, tratou de não o acompanhar na jornada. Não fazendo fé nas palavras, tratou de provar que haverá sempre Bela sem Sernão e amorou-se de varíadissimos pretendentes.

Passaram-se os anos e reza a lenda que Sernão d'Amortenha se especializou nos dotes teatrais. Dizem que é dos melhores declamacantadores do Reino. Mas aqui já entramos no terreno da mitalenda. Isto porque nunca mais se soube nada de Sernão.
Se não existe som de uma árvore a cair na floresta, também não chegam relatos de suas cantórias.
A audiência do Sernão constava apenas de bichos típicos da floresta: ratafungos, ornotopeios, burregalos, perigatos, galinhótamos, rinossauros zibrocerontes.
Os bichos acercam-se de Sernão. Bebem-lhe as palavras ou arrancam-lhe pedaços de tronco? As rolhas de plunvedicos zigursféricos vendem-se agora a 12 zélits o gramilo).

Por dezenas de quilomares na redoria da floresta onde enraizou eternamente, apenas um som se ouve durante as longas noites de luar nascente.
O som de Bela gritando depois de adormecidos os amantes, enquanto olha para todos os horizontes em redor.
"Sernão, Sernão D'Amortenha! Por onde andas tu?".

segunda-feira, dezembro 02, 2013

O cão do Bruno



Ao terceiro dia, o cão do Bruno aprendeu a fazer penhoras.
Com a mão direita segurei um osso e coloquei-o mesmo em frente ao seu nariz.
Dei-lhe o comando: “Penhora, cão!”, num tom de voz calmo e alegre, uma única vez.

O cão hesitou, por isso, com a mão esquerda, segurei-lhe gentilmente uma das patas, quase sem o magoar e empurrei-o em direcção do computador, onde o laptop já estava preparado para inserir os dados necessários à penhora. Ao mesmo tempo, enquanto o empurrava, ia colocando a minha mão direita para trás da cabeça do animal, acompanhando o movimento do seu corpo.
O cão do Bruno sentou-se quase sem dificuldades e começou a trabalhar.

Para não o cansar muito, ensinei-o apenas a fazer penhoras de bens móveis de pequena dimensão, motociclos e outras coisas de pouca importância para a economia nacional. Ao fim de uma hora, o cão do Bruno abanava a cauda, em sinal de contentamento.

Ao quinto dia, e quando o cão do Bruno já possuía os comandos básicos de obediência, começou a penhorar bens móveis de maiores dimensões.
Esperei pelo momento em que ele se encontrava a dormir a sono solto para que me aproximasse furtivamente. Delicadamente, e sem que ele notasse, segurei-lhe as patinhas da frente e, acto contínuo, ergui o seu corpo até que ele estivesse a cerca de dois metros do chão. Previamente, tinha aberto a janela que dava para a rua. Levei o canito em direcção à janela e coloquei-o do lado de fora, preso apenas pelas patas. O cão do Bruno olhou para baixo e deve ter reparado que trabalhamos num andar bastante alto daquele edifício de escritórios – mais precisamente, o 16º piso.

Com cuidado, para o não deixar cair, estabeleci contacto visual com o cão do Bruno e disse-lhe, num tom firme, mas fraternal: então, vamos fazer penhoras de bens móveis de maiores dimensões?
Foi um dia de trabalho muito produtivo, no qual o cão do Bruno aprendeu a fazer penhoras de maiores dimensões – ao princípio automóveis, depois passámos para os autocarros, os helicópteros, as aeronaves, os cacilheiros, torpedeiros, submarinos e porta-aviões. 

Ao fim de umas horas de exercício, o cão do Bruno abanava a cauda, em sinal de contentamento.
Ao sexto dia, passámos paras as penhoras dos bens imóveis, nomeadamente, prédios rústicos e urbanos e respectivas partes integrantes, bem como os direitos inerentes àqueles prédios (artigo 204º, do Código Civil).

A educação do cão do Bruno começou a tornar-se um verdadeiro desafio. A adrenalina constante com o desafio do trabalho obrigava-o a ficar sempre alerta, sem adormecer. Por isso, o truque de lhe pegar nas patas da frente enquanto ele dormia passou a ser ineficiente.
Ao sétimo dia, percebi que não devia obrigar o cão do Bruno a trabalhar. Não é produtivo estar a forçar um trabalhador a fazer aquilo que não quer. O melhor é tentar fazer passar a mensagem de que ele não tem outra alternativa.

E por isso, nada melhor do que expor as suas vulnerabilidades e mostrar-lhe a sua incapacidade em sobreviver à terrível lei da selva do mundo exterior.
Por outro lado, as chefias deram-nos os mapas de objectivos, através dos quais ficou bem claro que existe apenas uma margem de erro na ordem dos 0,008 por cento. Por isso, as directivas foram bem claras: temos de nos focar no trabalho.
Recordo as palavras de ordem do presidente, na mensagem de ano novo: “nada de brincadeiras, barulho e correrias.”

Tratei de adaptar o local de trabalho do cão do Bruno o melhor possível para que ele pudesse alcançar as metas estabelecidas pela entidade patronal. Lembrei-me dos meus tempos de estudante, horas mal gastas no meu quarto a tentar estudar, mas sempre distraído com alguma particularidade do mundo exterior.
Coloquei uma variadíssima panóplia de armadilhas ao lado da cadeira onde o cão do Bruno se senta. Isso impedia-o de se levantar a meio de um trabalho. Está explicado, no ponto 5.2 do normativo interno, que “um funcionário que se levanta da cadeira a meio do horário de expediente tem uma probabilidade maior na ordem dos 18,67 % de se enganar.

O cão do Bruno revelava, ao oitavo dia, uma relativa imaturidade, o que explica o facto de ter ficado com algumas mazelas permanentes que poderia ser facilmente evitáveis.
Uma das patas do cão do Bruno foi arrancada numa armadilha especializada para imobilizar doninhas com febre de dengue e a sua cauda ficou dilacerada ao passar junto ao “detector de movimentos em horário de expediente”, instalado no meio da sala, que é activado e deita imediatamente um jacto de ácido sulfúrico para cima do incauto funcionário que passeie durante as horas de trabalho.

Não há mal que não venha por bem. Sem cauda e sem uma pata, o cão de Bruno percebeu que não arranja outro trabalho lá fora. Percebeu que também não deve levantar problemas. O mais seguro é ficar sentado na sua cadeira, a fazer penhoras.

Será o cão do Bruno feliz?
No índice de felicidade apresentado trimestralmente pela empresa, o cão do Bruno, ao fim de dez dias de trabalho, ficou com uma média ponderada de 4,33 valores. Ao lado do gráfico, uma anotação, que dizia: “satisfatório. Mas pode melhorar em alguns índices” A chefia não explica em que índices deverá o cão do Bruno melhorar.

Não devemos fazer-lhe festas. A chefia desincentiva contactos corporais. O cão do Bruno começou a rosnar ao ouvir a palavra “festas”. 

O cão do Bruno especializou-se em penhoras de direitos. A penhora de direitos abrange igualmente, em regra os respectivos frutos civis.

O cão do Bruno não interioriza conceitos.  O cão do Bruno começou a penhorar todo o tipo de direitos, indiscriminadamente e a fazer uma amálgama onde cabem lá dentro frutos civis e direitos civis.

A chefia ficou muito agradada e a sua média ponderada já subiu para 4,54 e ofereceram-lhe um boné com o logótipo da empresa. Também lhe ofereceram um jornal, que serve para lhe cobrir o corpo durante as frias noites de inverno, enquanto faz penhoras pela noite dentro. 

O cão do Bruno começou a penhorar testamentos e últimas vontades, incluindo as missas pelas almas dos futuros defuntos. O Governador mandou um telegrama a felicitar o cão do Bruno pelas inovações em matérias de penhora introduzidas nos últimos dias, que permitem poupar na ordem dos 8,39765
O índice de felicidade do país é de 6,73                                              
O índice de felicidade da empresa é de 5,834 

O cão do Bruno penhora os funcionários que se juntam em grupos de mais de 3 pessoas à hora do almoço. A chefia obriga-os, ao fim do dia, a deixarem o cartão de identificação à entrada, para não mais voltarem.
O cão do Bruno está a planear penhorar a memória futura de 95% da população nacional não activa
Hoje, há 30 jornais espalhados pelo chão da sala, para darem as boas vindas aos 30 novos cãezitos do Bruno, que acabaram de nascer.

Fiquei aqui sentado, durante a noite, a planear o longo dia de trabalho e as acções de formação para os novos funcionários. Têm de aprender depressa, logo no primeiro dia. Há 500.000 penhoras pendentes de bens móveis. 1.500,00 de bens móveis. 3.000.000 de direitos. 5.000.000 penhoras de memórias futuras.
 Com a mão direita, seguro o osso, e coloco-o mesmo em frente ao meu nariz. Distraído, digo maquinalmente, num tom de voz calma e alegre, “penhora, cão”!




   

quinta-feira, novembro 21, 2013

O camião das mudanças



Encontrei a Olga no Funktrampspank, quando passei por lá para beber um copo. Estava óptima, como sempre, e tentei impressioná-la com os meus passos de dança de pombo pinguim javali. Pelo seu olhar, pareceu-me que a impressionava. E impressionei-a. Ela perguntou-me: “andas feliz? Não me pareces nada bem. Acho que precisas mesmo de fazer umas mudanças drásticas na tua vida.”

Com estas palavras, olhou para o relógio e informou-me que estavam à sua espera num outro local bem longe dali. Antes de se ir embora, informou-me que ia fazer um jantar em sua casa, daí a uma semana, e que eu estava convidado. Perguntei-lhe se precisava de ajuda para cozinhar. Respondeu-me com um mal disfarçado sorriso sarcástico, misturado com uma infinita piedade, dizendo-me que não era preciso, quando muito, eu podia levar umas batatas fritas de pacote, mas que tivesse cuidado, quando as comprasse, para ver se ainda estavam dentro do prazo de validade”. Quando disse isto, olhou-me, de novo, com uma redobrada intensidade no olhar e virou-me costas.

Deixou-me a dançar sozinho, na pista de dança e os meus passos de dança de pombo pinguim javali tornaram-se, de repente, acabrunhados e sombrios. Bebi mais um gin tónico e voltei para casa. Estava decidido. Tinha de fazer mudanças drásticas na minha vida.

Cheguei a casa e liguei o computador para fazer umas pesquisas na net. Tinha mesmo de encontrar os maiores especialistas na matéria.
Após uma pesquisa rápida, decidi que o melhor seria pedir ajuda a uma empresa. Fazia todo o sentido. Precisava de fazer mudanças drásticas. Nada melhor do que pedir ajuda aos maiores especialistas. E os grandes especialistas são as grandes empresas. Por isso, procurei empresas de mudanças. Mas que tipo de empresas de mudança?

Descobri que há empresas que só trabalham à hora e há empresas que fazem orçamentos fixos. Decidi-me pelo orçamento fixo. Até porque os sites da especialidade avisam que os serviços à hora apenas são recomendados para mudanças sem complexidade e em que seja evidente que em duas a três horas fica tudo feito. Eu precisava de um pouco mais de duas horas. Uma semana, talvez, para ter tempo de fazer um brilharete no jantar em casa da Olga.

Telefonei para o endereço de uma empresa de mudanças, dei-lhes a minha morada e disseram-me que no dia seguinte iam mandar uma camioneta de mudanças.
Sentindo-me satisfeito com as mudanças profundas que se avizinhavam na minha vida, bebi três gins tónicos e deitei-me a seguir.

Fui acordado pelo insistente toque da campainha. Olhei para o relógio. Eram só duas da tarde. Fiquei assustado. Quem é que me estava a acordar assim tão cedo? Seria uma emergência familiar?
Levantei-me após três bocejos prolongados e oito toques insistentes na campainha da porta.

“Já vai, já vai”.

Abri a porta, mas não vi ninguém. Até que ouvi uma voz fininha, realmente irritante, parecia um daqueles bonecos de borracha que damos aos cães para abocanharem.
Mas eu não tinha cães. Olhei para o chão. Vi uma camioneta, pequena, assim exactamente igual a esta que se encontra nesta imagem em baixo.


“Estava a ver que não abriam a porta. Estou aqui há dez minutos, parada, à espera. A primeira coisa que tens de aprender é que “tempo é dinheiro”. “Roma e Pavia não se fizeram num só dia” e está-me a parecer que não vai ser nem numa semana que começas a mudar de vida, se mantiveres esses hábitos doentios de acordar tarde”.

Não consegui conter uma gargalhada. A camioneta tinha uma voz realmente engraçada.
“Estás-te a rir de quê? Eu estou de pé desde as seis da manhã. Não é nada bonito andares a gozar com quem trabalha”.
“Desculpe, senhora camioneta”, disse-lhe eu, num trejeito de dor, pois a camioneta, num acesso de raiva, pisou-me em cheio no dedo pequeno do pé, com uma daquelas mini rodas dentadas, pequeninas mas bem afiadas.
“Eu nem tenho nada a ver com isso, recebo o mesmo, estejas tu de pé ou deitado. Não percebo é a mentalidade das pessoas que me contratam para uma coisa e depois não querem fazer nada. Por isso é que este país não avança. Querem mudanças, mas querem que as mudanças ocorram enquanto estão a dormir, sem fazerem esforço nenhum.
“Desculpe, mas eu deitei-me tarde…”
“Deitaste-te tarde…a fazer o quê? A jogar playstation? A olhar para a televisão? E como é possível uma pessoa deitar-se com esta bagunça toda em casa? Olhem para este chão de entrada! Umas meias atiradas para um canto, sapatos, migalhas…”

Senti-me um pouco vexado. A verdade é que a camioneta tinha uma certa razão. Meias mal cheirosas. Sapatos. E ela nem reparou na embalagem de iogurte. Nesse instante é que me dei conta… estava à conversa já há uns bons dois minutos e ainda não me tinha apresentado:
“Peço desculpa, mas estou a falar com quem?”
A camioneta fez um trejeito de desdém:
“Com quem é que haveria de ser? Tenho cara de quê? Vendedor de bíblias? Homem das pizzas? Cobrador do gás? Sou a camioneta de mudanças!”
Fiquei espantado e dei-lhe conta disso mesmo.
“Olhe que deve haver aqui um equívoco. Eu disse que precisava de fazer grandes mudanças. Está a perceber? Mudanças drásticas. Com o devido respeito, mas a senhora camioneta não me parece que tenha o tamanho suficiente para…”

A camioneta devia ser bem sabidinha, pois cortou-me o pio num piscar de olhos.
“Já ouvi esse discurso aí umas centenas de vezes. Meu amigo: eu já andava a fazer mudanças drásticas ainda nem tu devias ser nascido, portanto respeitinho, sim? Não conheces ditados populares, está visto. Não podes julgar um livro pela capa.”
Enquanto a camioneta falava, entrou de rompante pela casa e já andava a inspecionar cada recanto. Quando rematou com o “não podes julgar um livro pela capa”, já estava na sala, a olhar para as estantes.
“Por falar em julgar um livro pela capa…tens aí muita literatura, sim senhor! Para quê? Aposto que nem leste metade das coisas que para aqui estão. E se leste, andaste a gastar tempo. São só historinhas. “Antologia de poesia búlgara”! Fantástico! A tua vida mudou com a leitura desse livro? Deve ter mudado sim, perdeste dinheiro a comprar o livro, perdeste tempo a lê-lo, perdeste tempo a tentar compreendê-lo e agora gastas espaço na prateleira para o guardar. E nem sequer tens um sofá confortável! Olha-me para isto! Como é que queres mudar de vida se tens um sofá do tempo da pré-história”?

A camioneta saltou de rompante para o sofá.
“As molas estão todas estragadas. Meu amigo, lição nº 1: o conforto é essencial. Tens de te sentir bem em tua casa. Se tu não te sentes confortável dentro da tua casa, mais ninguém se sente confortável. Está visto. Tens as tuas prioridades todas trocadas. Olha, isto abriu-me o apetite. Estava mesmo a apetecer-me comer qualquer coisa. O que há para comer”?
A pergunta da camioneta apanhou-me desprevenido. A verdade é que eu já não ia às compras há umas semanas. Tinha-me abastecido bastante bem com latas de atum e de sardinha. E o stock de grão e de massa ainda estava com níveis satisfatórios.
“O que queres comer?”, perguntei à camioneta.
“Não sei, o que há? O lha, estava mesmo a apetecer-me um peixinho grelhado, acompanhado de batatas e verduras, depois de uma sopa caseira e uma entrada qualquer.”
“Não tenho sopa. Se quiseres, vou ali num instante buscar uma sopa instantânea ao supermercado. Peixe tenho – atum. Não há salada, mas tenho grão. O grão conta como verdura, não é?”
A camioneta começou a lançar-me impropérios:
“Parece impossível! Estou a falar com um adolescente? Olá! Planeta Terra a chamar o satélite perdido em órbita! Atum em lata? Estamos num acampamento de escuteiros? Desculpa, não queria dizer isso, é um insulto para os escuteiros, coitados dos escuteiros, os escuteiros sabem fazer nós, sabem ver trilhos, montar tendas e orientar-se no meio do mato. Tu nunca deves ter acampado, certo? Ou só acampaste para ires àqueles festivais de verão para fumares droga.”
“A verdade é que não costumo cozinhar para mim. Não sei cozinhar muitas coisas”.
“Não sabes cozinhar muitas coisas. E não queres aprender, não é? Antologia de poesia búlgara, romena, os melhores contos burlescos, ensaio sobre sei lá o quê. E livros de culinária? Nenhum! Sim senhor! Está visto que as prioridades estão mesmo trocadas! Vá, amanha-te e cozinha-me um peixinho fresco. Tenho fome! Quero comer!”

A camioneta começou a fazer uns ruídos realmente esquisitos e irritantes. Uma mistura de buzinas ensurdecedoras, motores ligados ao máximo, misturados com sons de travagem a fundo. E aquela voz de boneco de borracha que damos aos cães para abocanharem. Não me contive:
“Está bem! Eu tento cozinhar-te um peixe! Mas cala-te e ajuda-me a mudar de vida. E ajuda-me a fazer boa figura no jantar em casa da Olga, no próximo fim-de-semana.”

Cedo percebi que a camioneta não fazia os ruídos esquisitos e irritantes apenas quando tinha fome. Fazia esses ruídos quando tinha fome, quando eu não lavava a loiça, quando não varria o chão nem fazia a cama, nem arrumava o quarto ou limpava o ralo da banheira. Começou a fazer os ruídos esquisitos porque dizia que lhe doíam as costas de estar deitada num sofá tão desconfortável, por isso tive de mudar a mobília.

Arranjei um emprego, para fazer face às despesas crescentes. Depois de doze horas seguidas, percebi que a camioneta tem razão. Quando uma pessoa chega a casa, é essencial ter um sofá confortável, para adormecer em meio minuto.

Também percebi que a camioneta tinha os seus momentos de lazer. Quando eu encerava o chão do corredor até este ficar brilhante, sem um vestígio de pó, a camioneta acelerava perigosamente pelo corredor até chegar lá ao fundo, bem perto da parede, para, num último instante, fazer uma miraculosa e fantástica derrapagem, e subir a parede acabada de limpar, num magnífico slalom.

“Bravo, bravo!”, dizia-lhe eu, entusiasmado. Depois, ia logo limpar a parede, que acabara de se sujar com pequenas manchas do produto utilizado para encerar o chão.

No meio de todas essas tarefas, nunca mais me lembrei da Olga nem voltei a meter os pés no Funktrampspank.